O escritor de novelas Aguinaldo Silva, autor de sucessos como Senhora do Destino e Roque Santeiro, promete abrir a caixa-preta da tevê em seu novo romance, 98 Tiros de Audiência (Geração Editorial). Em entrevista à repórter Laura Mattos (Folha de São Paulo), reproduzida abaixo na íntegra, Aguinaldo fala sobre o livro, os bastidores da televisão, a imprensa e até os blogs.

"O Brasil está em choque. A estrela da novela das oito da maior rede de TV do país foi morta com um tiro que atravessou o silicone de seu peito. Na lista de suspeitos, boa parte do elenco, o autor e o diretor do canal. Viciada em álcool e cocaína, a musa quase cinqüentona vivia envolvida em escândalos e colecionava desafetos.

Na emissora, o clima era de festa. Aproveitaram para matar sua personagem, criar um "quem matou?" e elevar a audiência da então fracassada novela a um patamar histórico.

Essa é a trama de "98 Tiros de Audiência", novo romance policial do novelista da Globo Aguinaldo Silva, 62, baseado em fatos e personagens reais da televisão. Em entrevista exclusiva à Folha ele não deixa dúvidas: "Minha intenção foi realmente abrir a caixa-preta da TV." Autor de novelas como "Roque Santeiro", "Tieta" e "Senhora do Destino", Silva transporta ao livro sua vivência de quase três décadas na Globo.

"98 Tiros" (Geração Editorial, 340 págs) é seu 14º romance, e Silva anuncia que irá se dedicar exclusivamente à literatura a partir de 2010, quando termina seu contrato com a Globo. Leia a seguir algumas de suas apimentadas revelações.


FOLHA - O livro tem quanto da sua experiência de três décadas na TV?
AGUINALDO SILVA - Quase tudo vem de histórias que vivi ou ouvi, só que não são contadas necessariamente como aconteceram. Acrescentei a essas histórias os temperos da ficção. E algumas vezes misturei duas histórias em uma ou alterei algo de algumas delas. Embora seja um livro baseado em fatos reais, é 100% um livro de ficção. Ainda não é o meu livro de memórias.

FOLHA - O leitor então, paralelamente ao romance policial, encontra a realidade dos bastidores da TV.
SILVA - Exatamente. A minha intenção foi realmente abrir a chamada caixa-preta. Existe um interesse muito grande em relação a esse universo, que é muito fechado e mitificado. Os personagens envolvidos com o universo da TV são tratados como deuses, e quis desmitificar isso, mostrar que somos seres humanos, que temos paixões, ódios. É um ambiente de grandezas e misérias como qualquer outro. Além disso, eu, que não sou um sociólogo, mas um ficcionista, tive a intenção, que pode parecer pretensiosa, de mostrar como funciona esse universo que ocupa tanto a intenção das pessoas. Queria que daqui a 20 anos, quando alguém quisesse saber como era a televisão brasileira naquela época, pudesse ler esse livro.

FOLHA - O sr. quer dizer que quis dar ao livro um traço sociológico?
SILVA - Embora eu não seja sociólogo, ele tem sim esse traço. Não quis escrever um livro que causasse escândalo, mas algo que fosse muito além disso.

FOLHA - Mas o lado das fofocas é saboroso. É real a história da estrela da novela que errou 37 vezes sua fala na gravação só para prejudicar o ator que contracenava com ela?
SILVA - Sim. Não presenciei, mas ouvi os relatos. E o ator, como no livro, perdeu a paciência e bateu com a cabeça na parede. Não vou dizer quem foi, claro.

FOLHA - Nem quando aconteceu?
SILVA - Isso foi... deixa eu ver... acho que foi na época de uma novela chamada "Água Viva" [risos]. [Globo, 1980, escrita por Gilberto Braga e Manoel Carlos, com Betty Faria, Tônia Carrero e Beatriz Segall].

FOLHA - A emissora na qual tudo se passa ia ser chamada de Rede, mas mudou para Network [rede, em inglês]. Foi para distanciar da Globo?
SILVA - É, minha intenção foi essa. Não quero em nenhum momento que pensem que isso é um ajuste de contas meu com o veículo ou com a emissora na qual trabalho. Mesmo porque estou muito bem na emissora e feliz por trabalhar no veículo. Por isso mudei o nome. A Network na verdade é uma somatória de todas as redes.

FOLHA - O livro fala que a Network é a principal rede, que a audiência é muito maior do que a das outras, que na quarta-feira o futebol deixa o capítulo da novela menor. Parece bem claro que fala da Globo.
SILVA - [risos] É, mas o que eu não queria era que passasse que é um ajuste de contas. Não é um ataque à Globo como instituição. São histórias que podem ocorrer em qualquer emissora.

FOLHA - Mas a sua vivência é lá.
SILVA - É lá, claro.

FOLHA - O sr. já declarou que Aurora Constanti, a protagonista do livro, é uma mistura de três atrizes.
SILVA - Isso. Mas tem também traços de outras atrizes. Essa história da cena que ela repete 37 vezes aconteceu com uma atriz bem mais idosa do que ela [Aurora tem pouco menos de 50 anos]. Na verdade, a Aurora é uma síntese de todas as deusas que povoam esse universo.

FOLHA - Meu chute para as três que inspiram Aurora: Vera Fischer, Suzana Vieira e Regina Duarte.
SILVA - [risos] Olha, eu adoro essas três, já trabalhei com elas e não consigo ver nenhuma delas na pela da minha diva.

FOLHA - O diretor artístico todo-poderoso da Network, Mister Zee, tem algo de Daniel Filho?
SILVA - Na verdade, ele tem muito dos grande pioneiros da TV brasileira, mas também algo dos grandes produtores do cinema americano, que têm um poder, uma competência e uma voracidade enormes. No Mister Zee eu transcendi um pouco o universo da TV, porque tenho um fascínio por essas criaturas.

FOLHA - As reuniões da direção da emissora são no livro tensas, com um jogando a culpa no outro pelos problemas da novela. Isso é real?
SILVA - Não é mais. Houve uma fase em que era assim, bem personalista. É meio terrível dizer isso, mas acho que hoje as reuniões perderam a graça. Tudo é com hora marcada, objetivo, ninguém sai do tom. Gostava mais de antigamente, quando todo mundo se descabelava, passava mal e você nunca sabia se ia sair vivo. Era mais emocionante [risos].

FOLHA - O livro deixa muito claro que por trás da maioria das figuras da televisão existe uma carência e insegurança muito grandes.
SILVA - Não queria que os leitores pensassem que nesse ambiente só há monstro, mas o contrário, queria mostrar que todos são seres humanos, com a mesma carência dos outros, agravada por lidar com a emoção, o que é muito forte e fragiliza esses profissionais. A emoção escapa, deixa sem chão.

FOLHA - O sr. fala de pessoas que eram pobres, simples e que, através da televisão, atingiram um poder enorme, o que as deixa perturbadas. Conhece muitas histórias assim?
SILVA - Isso é mesmo muito comum. Tem outra coisa: atores que trabalham nas novelas do Gilberto Braga ["Vale Tudo", "Celebridade"], por exemplo, são obrigados a aparentar em cena um refinamento que às vezes eles não têm. Isso é bastante esquizofrênico.

FOLHA - O livro trata da imprensa com uma boa dose de veneno...
SILVA - Sempre digo que não sou novelista, estou novelista. O que sou realmente é jornalista. Leio três jornais por dia de cabo a rabo. E como fui jornalista durante 18 anos, eu me dou o direito de ter uma postura crítica em relação ao jornalismo especializado em TV. Ao mesmo tempo que o nosso trabalho na televisão é visto com uma certa condescendência pela parte da imprensa encarregada de cobrir esse setor, a televisão é no fundo considerada por quem cobre o tema como uma coisa menor. O tema é ao mesmo tempo muito importante e muito desdenhado. Os editores sabem que precisam falar de TV, mas não a vê como assunto sério. Assunto sério é o cinema iraniano [risos]. Aliás, agora é o vietnamita [risos].

FOLHA - Um dos personagens chega a dizer que quem matou Aurora foi a mídia, de tanto explorar sua vida pessoal. Em sua opinião, a mídia é cruel com as celebridades?
SILVA - Tenho visto casos que me deixam chocados. Eu me lembro que durante anos houve uma campanha terrível da mídia contra um cidadão chamado Oswaldo Montenegro, que é um compositor mediano como vários outros do Brasil. Mas de repente ele foi escolhido para ser o exemplo do que havia de mais chato, de mais careta, e era injustificado porque ele fazia shows que eram sucesso. Mas toda hora se lia notas pejorativas e negativas. Algumas pessoas são escolhidas para vítima. "Vamos sacanear o fulano". Mas o mais grave é que esse noticiário especializado em TV ele tem uma tendência a nivelar tudo, nada é profundo, é sério, tudo tem que ser fatiado. Isso acontece muito com celebridades que fogem do padrão, como Aurora fugia. Elas começam a ser fatiadas, desconstruídas, para chegar num nível que seja digerível para o público.

FOLHA - O sr. disse que Suzana Vieira não inspirou Aurora, mas à época de "Senhora do Destino", muitas notas de jornais e sites diziam que ela dava problemas nos bastidores, tinha chiliques, e o sr. me afirmou que ela estava sendo vítima de um jornalismo equivocado.
SILVA - Depois que passou, percebi o que aconteceu. A Suzana é uma profissional rigorosíssima. Como era protagonista, chegava ao estúdio com 30 cenas para gravar e as falas decoradas. Ia gravar com um ator que só tinha aquela cena e não tinha decorado as falas. Tinha um ataque e estava certíssima.

FOLHA - No livro, o sr. questiona a qualidade do jornalismo dos blogs.
SILVA - Você precisa colocar sempre alguma coisa no blog e nem sempre tem o que pôr. Isso ficou muito claro para mim nessa crise do mensalão. Acompanhei todos os blogs e sentia a necessidade de manter o internauta preso com novidades postadas. Mas que novidades?

FOLHA - O sr. menciona que celebridades se sentem eternas ao ver seu rosto numa capa de revista.
SILVA - Isso se dá com as pessoas que não são verdadeiramente profissionais. Se você é um grande ator, sabe que sempre haverá personagens para você. Mas se é só uma celebridade, nada garante que o será daqui a cinco anos. E essas é que caem na armadilha das revistas.

FOLHA - Everardo Lopez, o autor do livro, chega a ter uma ereção quando sua novela atinge 98 pontos de audiência. Isso ocorreu com "Roque Santeiro" [1985], de sua autoria. O que há do sr. nesse novelista?
SILVA - Pensei em disfarçar, dizer que não era eu, mas pensei melhor e decidi assumir: o Everardo sou eu e não abro mão disso [risos]. A ereção é um símbolo do senso do poder que aquilo transmite ao autor. Tenho a impressão que com autores que mal saíram da adolescência, isso deve até acontecer. Comigo não aconteceu [risos].

FOLHA - Como foi essa época?
SILVA - Foi mágica. "Roque Santeiro" não era exatamente minha, mas de Dias Gomes [1922-99]. Ele me escolheu para escrever e foi um sucesso. Fiquei fora de mim. Eu me lembro que morava numa casa em São Conrado e ia para a janela na hora do intervalo até esperar o "plim plim" do novo bloco, e o som vinha da cidade inteira. Era incrível. Isso te dá uma sensação de poder. Se não tiver os pés no chão, enlouquece.

FOLHA - Após 20 anos, em "Senhora do Destino", o sr. também saboreou recordes. Foi diferente?
SILVA - Houve ameaças de aquilo subir à minha cabeça, mas hoje sei que a novela acaba quando acaba. A coisa mais importante para a televisão é a novela que está no ar. Isso me ajuda a não sair da realidade.

FOLHA - No livro, o ibope cai de 98 para 42 no dia seguinte, e o autor cai em depressão. Já passou por isso?
SILVA - Passei um pouco em "Suave Veneno" [1999], quando tive de enfrentar o Ratinho no auge. Não é que ele tenha ganho alguma vez, mas você se sente vencido porque a audiência na Globo não admite nem a proximidade com as concorrentes. Mas "Suave Veneno", mesmo sem ser um sucesso, tinha 25 milhões de telespectadores. É maluco você se sentir um fracasso porque "só" tem 25 milhões vendo sua novela.

FOLHA - Sua relação com Dias Gomes teve um atrito, como com o novelista do livro e seu mentor?
SILVA - A nossa relação durante alguns anos foi muito traumática, não por nossa culpa, mas em razão de a mídia ter transformado nossa desavença em uma fofoca que não acabava nunca. Em "Roque Santeiro", escrevi dois terços dos capítulos e ele resolveu que escreveria o final da novela. Ele quis pegar o filho de volta, e eu já achava que o filho era meu. Não nos falamos durante dez anos. Até que numa reunião de autores, sobramos só eu e ele no balcão do cafezinho. Ele virou para mim e perguntou: "Você toma com açúcar ou adoçante?" [risos]. Passamos uma esponja em tudo, foi maravilhoso porque isso me incomodava muito.

FOLHA - Outro veneno destilado no livro é jogado contra apresentadores de telejornal "que não conseguem nem redigir 'Ivo viu a uva'".
SILVA - [risos] Existe essa discussão, que é muito boa, sobre pessoas que aparecem na televisão lendo notícias não redigidas por elas. São jornalistas? Acho que são artistas, não?"

Texto de Laura Mattos, da Folha de S. Paulo

0 comentários: